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Paródia de uma guerra

Já são 50 anos desde que os ânimos se exaltaram entre França e Brasil pela pesca da lagosta em águas nordestinas. O conflito era não apenas uma disputa econômica internacional, mas um campo de batalha simbólico entre o governo João Goulart e os militares, às vésperas do Golpe de 1964

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A situação se complicou na quinta-feira da semana do Carnaval de 1963 – há 50 anos. O governo francês avisou ao Itamaraty que o Brasil teria de lidar com o contratorpedeiro Tartu resguardando os barcos gauleses que pescavam ilegalmente lagosta na costa nordestina. A pedido do presidente João Goulart, Marinha e Aeronáutica reforçam suas bases por aqui. Estava oficializada a Operação Lagosta ou, como é mais conhecida, a Guerra da Lagosta, entrevero diplomático que opôs a incipiente indústria brasileira do crustáceo à tecnologia francesa, já experimentada e aperfeiçoada na pesca predatória das colônias africanas.

Daquele dia em diante, o clima de tensão não se desvanece logo. Diversos navios e aeronaves ficam a postos para o caso de necessidade efetiva. Até o Exército contribui. Só vai mesmo arrefecer em março com a debandada francesa – e a prevalência nacional sobre a lagosta. Nenhum tiro foi disparado, porque a grande disputa permaneceu principalmente no terreno do simbólico e do econômico.

“Se a Guerra da Lagosta foi uma espécie de laboratório pró-reformas para Jango, foi igualmente um laboratório pré-golpe para os militares, que revelavam não só em discursos, mas também em gestos, suas intenções de ruptura com o poder institucional”, escreve o doutor em História pela Universidade de Coimbra, Túlio Muniz, em artigo dedicado ao tema.

Com a reação imediata das Forças Armadas, elas acabaram obtendo “maior simpatia perante a opinião pública. Invariavelmente, os militares tomavam decisões sem consultar Brasília”, esclarece Muniz em entrevista por e-mail. Exatamente um ano após a Guerra, viria o golpe de estado que implantaria uma ditadura no País. No caso do conflito pela lagosta, houve intensa colaboração dos jornais em todo o território para construir um discurso que valorizasse o nacional em detrimento do poder francês. Nesse bojo, os militares estavam amplamente referendados.

“O que estava se disputando então era a captura de um produto que já fazia parte da pauta de exportação do Brasil e que possuía valor agregado. Até o início da década de 1950, os pescadores trabalhavam para consumo próprio. Em 1955 passa a ser produto voltado para o mercado externo”, destaca a professora do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maria do Céu de Lima.

O ano de 1955 é marco por conta da atuação do norte-americano Davis Morgan que montou uma indústria pesqueira de lagosta, a princípio, nas praias de Caponga e Morro Branco. De lá até o momento da “Guerra”, a exportação chegou a movimentar um bilhão de cruzeiros ao ano, como publica O POVO no dia 1º de março de 1963, logo acima de manchete apontando que o Exército estaria preparado para agir por ocasião de uma eventual batalha terrestre.

E os pescadores artesanais de antes tiveram de se enquadrar e se relacionar com esse modus operandi industrial ainda incipiente. É exatamente o empresariado nascente que permite a manutenção de saberes que poderiam ter desaparecido caso o crustáceo não tivesse retorno econômico garantido.

Nos discursos oficiais e da mídia escrita na Guerra, como explica Muniz, os pescadores surgiam em papel coadjuvantes. “Neste cenário, a defesa de interesses supostamente nacionais surge aos pescadores mais como defesa de interesses de um grupo empresarial específico do que da população”, analisa.

Saiba mais
A marcha da lagosta
O Brasil argumentava que o crustáceo caminhava, logo pertencente ao solo nacional. A França alegava que a lagosta era um peixe, nadava, logo um recurso de alto-mar e não apenas brasileiro.

Marchinhas de Carnaval se espalharam. A Marcha da Lagosta parodia o hino francês: “Larga esta lagosta /Deixa de areia /Senão vai dar coisa feia /Faço uma proposta pra você (por quoi?) /Faço um acordo de irmão / Traga uma francesa pra mim / E leve tudo, leve até o camarão”.